CANÇÃO SELVAGEM

[Geraldo Maia]

 

 

 

CANÇÃO SELVAGEM

 

pra Gerardo Mello Mourão

 

 

“Xe anho co taba pupe aico

cerecoaramo uitecobo”

 

 

Eu somente na trilha vento coração sem margem

meio de casa fogo cem mil que de fome chegam

quando dos que o mar depositou praia na luz

assim de estrelas que tremeram até quase sumir

e o sol chegar bem com seu quasar de mel

o povo todo comeu coisa nova e gostou

o espírito dos confins se juntou na dança

até fogueira despejar seu pó de dormir

grande pé de couro pendurado na porta

lembra que apetite tem bocas estranhas

 

Foi quase um sonho se não fosse o abismo

um sonho com sua lenta canção de milênios

o aço simples que logo jorrou das falas

vertendo seu grito com um soco seco

amadureceu o vento nos seus descaminhos

debulhou o pranto prenhe dos roçados

fez desaparecer o canto que juntava olhos

adormeceu as águas numa lagoa aguda

e quando os filhos sedentos se ergueram

só havia um gole de silêncio ao longe

 

Eu somente venho da casa dos guerreiros

trago ainda um arco euma sementeira

tenho a arte da palha e guardo as falas

que os primeiros corações selvagens

aprenderam na língua do sol e da lua

quando já vai longe o espírito da risada

tingiu-se a dança com as cores do adeus

as cantigas nas tardes viraram lâminas

que as crianças usam para riscar o céu

da memória numa sandália de pneu

 

Cinco rios cruzaram cinco pontes em vão

cinco vezes calaram o cio de cinco cavernas

cinco luas surgiram numa circunstância sutil

cinco doses sorvidas numa sofreguidão servil

cinco moedas em troca de uma circunferência

que continha o todo de uma poção desmedida

e nada se pode fazer para estancar a sangria

nada é parte também e como parte é quase tudo

e quase que cinco séculos tragaram o infinito

que ficou gravado num hiato de cinco ciclos

 

Eu somente quero o que tenho do que sou

do que penso e do que sinto uma semente

que vejo atrás e na frente nesse momento

os que nasceram primeiro e os que vieram

além das montanhas do mar em suas naves

com grandes olhos e bocas como túneis

e dessa dor de garras e dessa festa do sol

e desse sangue de lua e dessa noite absoluta

finca-se o caminho do que se fez um dual

e múltiplo com as asas de seu próprio destino

 

Geraldo Maia

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